"O maior prazer de um homem inteligente é bancar o idiota diante de um idiota que banca o inteligente"



Confucio



sexta-feira, 6 de maio de 2016

Mãe





O moleque querendo sair e ela o puxa de volta. O pai, parado na calçada, espera.
E com aquela bendita escovinha ela lhe espana os ombros, os braços, a nuca, o peito, a costas, a cabeça, as costas de novo.  E os ombros e os braços e a nuca. Tudo outra vez. Faz o moleque rodar feito um frango de padaria e checa tudo de novo.
Por último, lhe arruma o topetinho com os dedos, segura no queixo do menino e o enquadra bem pra ver melhor.
É, tá bom.
Devolve a escova pro barbeiro, pega na mão do moleque e vão-se embora.




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sexta-feira, 20 de julho de 2012

Rolando Boldrin e seus "causos"



Eu cresci ouvindo samba-canção e chorinho por parte de pai, Beatles e Rolling Stones por parte de irmão. Sim, tenho um gosto musical bastante eclético. Para mim, existem dois gêneros de música: “gosto” e “não gosto”.
Uma coisa que também não faço é patrulhar a vida alheia. Gosto não se discute, até se lamenta, mas jamais se impõe. Portanto, se vós, caro leitor, sois fã dessa música que faz sucesso hoje no Brasil; não serei eu a pessoa a criticar-vos.
Por outro lado, tenho todo o direito de dizer do que gosto ou não gosto, sem que me encham o saco por causa disso. Não, não sou elitista, intelectual nem metida à besta. Só gosto daquilo que, na minha percepção, é música boa.
Tudo isso só pra dizer que não gosto de música sertaneja, mas adoro música caipira; que alguns gostam de chamar: “música de raiz”.
E falar de música caipira e não falar de Rolando Boldrin seria uma insanidade. E uma falta de respeito!
Assistir ao Sr. Brasil, programa que já teve tantos nomes, mas manteve-se sempre fiel ao seu estilo e aos seus propósitos, é um prazer enorme. Não só pela música de qualidade que se respira por lá, mas também e até principalmente, pela simpatia e genialidade de seu apresentador. O ator Rolando Boldrin e seus "causos" contados com tanta maestria são um verdadeiro bálsamo nas noites de quinta-feira. E como se não bastasse tanta coisa boa, no programa exibido ontem (19 de julho de 2012 pra quem estiver lendo isso sei lá quando) se exibiram por lá os fantásticos Demônios da Garoa. Aí já é covardia com o coração desta que vos escreve. Impossível não me lembrar de meu pai e seus amigos violeiros e das rodas de samba às tardes de sábado na casa em que eu cresci. Meu pai não sabia tocar mas gostava de soltar a voz , imitando Nelson Gonçalves! E eu, muito pirralha e atrevida, cantava “Trem das Onze”, para orgulho do meu velho!
Ah, mestre Rolando, ontem você judiou do meu coração. Mas foi uma “judiera” boa, daquelas que a gente chora com um sorriso nos lábios e o coração leve.
Valeu, mestre!


Abaixo, um saboroso encontro entre Almir Sater e Rolando Boldrin, em "Sr. Brasil".





Abaixo, um texto que escrevi para meu pai, em 2009.

"Eu era a mascote"


Sempre aos sábados. Depois do almoço. O violão era dele, mas não sabia tocar,então chamava o amigo. E vinham os outros. E vinha o irmão. E nos fundos da velha oficina, onde fazia sua arte em madeira, cantava seus amores, sua saudade, sua juventude. E era feliz, magnificamente feliz em sua simplicidade. Eram chorinhos, sambas e boleros. Mas quem cantava "Trem das Onze" era eu. E então, meu pai deitava sobre mim seu olhar misto de orgulho e carinho - não canta bem, a minha menina?
Saudade, meu velho, há dez anos não canta mais. Mas o seu olhar levo comigo, dentro do peito. Te amo, pai.


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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Divagações de Ângelo Marcos


Divagações de Ângelo Marcos


"Eu fico muito irritado com esse negócio de profecia. As profecias nunca são precisas. São sempre confusas, com duplo sentido. Ou triplo...
O sujeito escreve lá com um monte de palavras difíceis, faz até poesia só pra deixar margem para várias interpretações e sair pela tangente quando a tal previsão não acontece. Aí vem aquele bando de carolas e malucos dizer que não era bem aquilo que o cara quis dizer e blá, blá, blá. Arrumam desculpa pra tudo. Veem com aquele papo de que não era bem naquele dia que ia acontecer a desgraceira toda porque alguém não levou em conta não sei o quê ou alguém traduziu o barato errado do sânscrito pro chinês; e por aí vai.
Isso me deixa irritado. Tem gente que tem o hábito de distorcer um fato até conseguir te provar que óleo e água se misturam. Só pra não admitir que estão erradas ou foram enganadas.
Tem também aquele cara que interpreta a Bíblia de acordo com as suas conveniências. Tem aquele que acha que a Bíblia foi escrita só pra ele. Tem aquele que acha que escreveu a Bíblia! E tem aquele que pensa que é Deus, mesmo.
Mas, voltando às profecias. Dizem que o Nostradamus era um cara sério. Quem sou eu pra duvidar? Mas quem foi que leu o cidadão e interpretou que o mundo ia acabar, literalmente, em 1999? Se você souber quem foi, manda ele falar com a minha mãe.
Sabe o que é passar a infância todinha fazendo conta (o que era um sacrifício, já que cálculo nunca foi o meu forte) pra saber quanto anos eu ainda tinha de vida? E na adolescência? 1999 chegando e eu crente que ia morrer na flor da idade! Estudar pra quê? Pra quê fazer planos para o futuro? Que futuro??
Então eu ia passar os poucos anos da minha doce juventude trabalhando? Pra quê?
Tá vendo, mãe. Se hoje eu sou um vagabundo, a culpa é do Nostradamus!
Pronto, falei."

Nota: Este é um texto de ficção. Qualquer semelhança entre o Ângelo Marcos e aquele seu cunhado que dorme no sofá da sua sala é mera coincidência. Ou não.

PS da nota: O Ângelo Marcos cancelou a entrevista de emprego na próxima segunda-feira porque, afinal de contas, o mundo vai acabar em 2012 mesmo...






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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Lua Cheia


Ela esperou. Pacientemente. Quando teve certeza de que os pais estavam dormindo, saiu. Desceu as escadas com a mochila nas costas e uma pequena bolsa. Tentou não fazer barulho. Levava apenas o necessário. Ainda descendo os degraus, olhou para a Lua através dos imensos janelões que ladeavam a escadaria. Parou por um momento. Logo estaria com ele, sob aquele luar.
Não tinha nenhuma dúvida sobre a sua decisão, se entregaria de corpo e alma, literalmente. Caminhou pela alameda escura, as árvores filtravam o brilho prateado da Lua. Estava excitada, apaixonada e, sobretudo, deslumbrada por aquele homem. Quando soube o seu segredo não sentiu medo. A princípio não acreditou, claro. Mas ele lhe provou. Rapidamente. E rogou por seu amor. Não havia como não sucumbir, dizer não àqueles olhos...
Avistou-o a alguns metros, metido num elegante casaco. Sorriu pensando em como ele era espirituoso. Parecia uma figura saída do século XIX, achou divertido.
Aproximou-se dele e emocionou-se ao ver seu rosto, pálido. Era tão lindo! Ele pegou suas mãos e as beijou com imensa ternura:
- Por toda a eternidade, minha amada...
Ela explodia de excitação, nunca imaginara poder amar tanto uma criatura. Chegava a doer olhar para ele e lágrimas rolaram pelo seu rosto. Ele as enxugou, uma a uma.
Delicadamente, segurou seu rosto entre as mãos e a beijou. A princípio, um beijo terno, mas ela logo sentiu sua língua explorando sua boca com volúpia. As mãos desceram pelo corpo e ele a apertou contra si. Ela correspondeu ao beijo, a tudo. Pareciam fundir-se. Entorpecida,
ficou completamente entregue.
Ele, então, agarrou seus cabelos e inclinou, quase violentamente, sua cabeça e teve à sua disposição, o esguio pescoço:
- Sua... eternamente...sua...
Excitadíssima, mal conseguia respirar, aguardando o êxtase prometido. Cravou-lhe os caninos no pescoço enquanto a dominava com força brutal.
Ela sentiu uma dor lancinante, insuportável. Não entendia, tentou se desvencilhar, livrar-se daquela agonia terrível. Mas era inútil, ele a prendia, a submetia.
Começou a estrebuchar, violentamente. Perdia os sentidos por alguns instantes, voltava à consciência e implorava para que aquilo acabasse logo!
Sofreu ainda por longos minutos, sendo sugada, impiedosamente.
Ele, finalmente, a largou. Tombou sem uma gota de sangue no corpo. Sem vida. E para ela não retornaria.
Tola. Eternidade é para poucos, minha cara.
Tirou um lindo lencinho bordado do bolso do casaco e limpou a boca como quem acabara de degustar um bom vinho. Gostava daquele lenço, pertencera a uma atriz decadente, que conhecera na França, no comecinho do século XIX. Ah, bons tempos aqueles...
Caminhou satisfeito pela alameda arborizada. Olhou, ainda uma vez, para trás. Ela jazia sobre o chão coberto por folhas secas de outono. Que imagem romântica... pensou. Colocou as mãos nos bolsos, inclinou a cabeça, arqueou as sobrancelhas:
- Mas o que ela pensou? Que eu fosse amá-la por toda a eternidade sob o crepúsculo?






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sábado, 18 de junho de 2011

Por uma boa causa


Entrou correndo pela rua estreita e mal iluminada. Escondeu-se atrás de uma caçamba cheia de entulhos. Não conseguia respirar direito, não só pelo esforço de estar correndo já há algum tempo, mas também pelo pavor de ser pego. Ofegante, olhou para todos os lados procurando pelas malditas câmeras. Estavam em toda parte. Trazia o pequeno pacote no bolso interno da jaqueta. Poderia livrar-se dele, deveria! Mas foi tão difícil conseguir! Arriscou-se tanto e custou tão caro! E como o queria, precisava!
Não, decididamente não iria se desfazer de seu precioso pacote. Não chegara a tanto por nada! Esperou alguns minutos no mais absoluto silêncio, os sentidos aguçados. Aparentemente, havia escapado. Observou atentamente todos os pontos onde poderiam haver câmeras de vigilância. Logo localizou duas delas. Uma não se movia, provavelmente quebrada. A outra girava lentamente, ameaçadora. Aninhou-se ainda mais entre a parede e a caçamba que estava sobre a estreita calçada. Finalmente, sentiu-se seguro.
Com as mãos trêmulas pegou o pacote, cheirou-o, ávido por abri-lo. Mas uma luz intensa o cegou, não teve tempo de assimilar o que acontecia.
Seu corpo foi despachado para a família no dia seguinte.
O policial que o matou anexou às provas, o fatídico pacote. Um saquinho de jujubas. Coloridas.
Este era o preço que pagavam aqueles que infringiam a Lei Antidoces, implantada para baratear os custos do Estado com tratamentos dentários.
Morreu com cinco balas no peito e nenhuma cárie na boca.

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ando farta de tanta patrulha.


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segunda-feira, 6 de junho de 2011

E o E.T. virou poeta...


Como a maioria dos alienígenas, eram todos absolutamente iguais. Ariovaldo não aguentava mais tanta monotonia. Não apenas a monotonia de olhar para a mesma cara todos os dias diante do espelho mas a mesmice de olhar para a mesma cara no trabalho, na escola, na balada, na vizinhança, no planeta todo! Haja imaginação para elogiar os olhos da amada, tão enormes e esbugalhados quanto todos os outros. E da mesma cor.
É, o Ariovaldo tava jururu. Sua mãe nem ligava. De tempos em tempos um desses jovens sempre questionava o porquê de serem concebidos assim, iguaizinhos. Eram assim há milênios, frutos de uma geração ideal, criada em laboratório após extensas pesquisas e experimentos genéticos. Chegaram, pois, ao apogeu de civilização. Todos iguais. Iguais, mesmo.
Ariovaldo, largadão no sofá da sala, resolveu encontrar com a galera pra animar um pouquinho. Digitou o código no seu desmaterializador de pulso e materializou-se na casa do avô...De novo!
- Você não vinha pra cá, vinha?
- Claro que vinha, vô! E aí? - disfarçando.
- Vinha nada! - resmungou o velho - Essa merda aí pifou de novo, não foi? É o que eu digo! No meu tempo não era assim. A boa e velha cabina de teletransporte é que era boa! Podia demorar dois décimos de segundo a mais mas o destino era certo! Essas invencionices...
Ariovaldo olhou pra cima louco pra sumir dali:
- Valeu vô, to indo, tenho que estudar pra uma prova aí - e se mandou pra casa.
"Entediado" - publicou no seu microblog. Suspiro.
Resolveu fazer umas visitas virtuais. Deu uma espiadinha nos severianos, habitantes do planeta vizinho. Que sorte tinham! Seus olhos tinham cores diferentes, variavam do amarelo ao mostarda. Entrou, bateu um papinho com o Fernandinho, seu amigo inter cambista de idos tempos. Saiu, tédio de novo. Então, viu lá no menu de opções um planetinha azul, recém descoberto, que ninguém dava bola`. Pensou o quê poderia ter de interessante num lugar tão pequeno e distante. Os Senhores diziam que fazia parte dos planetas nanicos. Em tamanho e civilidade. E que não valeria à pena conhecê-lo. Logo o deletariam, aliás...
Resolveu xeretar. Se fosse legal entraria pra conhecer o pessoal.
Mas às primeiras imagens que surgiram em frações de segundos,
Ariovaldo esbugalhou ainda mais os olhos! O que era aquilo? Um verde interminável, ponteado de um colorido impressionante com criaturas voando, ainda mais coloridas e emitindo um som maravilhoso. Seu coração começou a bater mais forte. Pensou se eram esses os habitantes do planetinha,  mas viu muitas outras criaturas totalmente diferentes! Cara, não acredito!
Excitadíssimo, continuou freneticamente sua exploração virtual. Viu, então, uma praia. Seu coração, aí sim, quase saiu pela boca. O que eram aquelas criaturas? Pareciam ter pernas e braços como ele. Mas eram únicas! Não havia uma sequer igual à outra. E algumas delas, caramba! .Algumas eram lindas, com umas curvas, uma cor dourada. O Ariovaldo pirou o cabeção!
Tomou coragem e entrou. Seu materializador o deixou invisível por questão de segurança. Caminhou completamente pasmo entre aqueles seres absolutamente incríveis. Não cansava de se maravilhar, quase bateu o cabeção num poste, extasiado com uma morena escultural. Em que ano estelar estaria? Perguntou ao XPO, seu tradutor universal de pulso.  No calendário local você está em 1962, disse o XPO,  e esse lugar aí é uma tal de "Praia de Ipanema".
Ipanema, murmurou suspirando o Ariovaldo, que também estava inaudível. Resolveu se enturmar. Ainda bem que tinha aquele opcional no XPO para assumir a forma dos habitantes dos locais visitados. Custou uma puta grana mas finalmente ia valer à pena.
Transformou-se num garotão de bermuda e camisa florida. O XPO disse que era o disfarce perfeito.
Viu um sujeito simpático, sozinho, numa mesa de bar. Pediu para o XPO traduzir os caracteres escritos na fachada. "Bar Veloso".
Entrou e sentou-se abruptamente à frente do homem e disse, mecanicamente:
- Oi, eu sou Ariovaldo!
O homem, no início um pouco assustado, acabou rindo e respondeu no mesmo tom:
- E eu sou Vinícius!
- Vinícius! E aí, véio? - com o sorriso mais idiota do mundo.
- Você é paulista, né? - disse o homem com cara de piedade.
O Ariovaldo achou melhor não contrariar:
- Ah, claro!
- Logo vi...
O Ariovaldo ficou horas conversando com o sujeito simpático que, de vez em quando, fazia aquela cara de piedade quando olhava pra ele. Ficou encantado com as histórias que o homem, pacientemente, lhe contava sobre aquela praia, aquela cidade que ele chamava Maravilhosa.
- Menino, parece até que você veio de outro planeta! O Rio é a Cidade Maravilhosa!
- Maravilhosa é pouco - disse o Ariovaldo olhando pra uma garota em um duas-peças que passava lá na calçada.
- É garoto, beleza é fundamental.
Ariovaldo lhe contou sobre a Lindalva, sua namorada. Disse-lhe que gostava dela mas que a parada tava meio devagar, quase parando. O tal Vinícius, então, lhe deu uma aula de sedução e poesia. Falou da paixão e de sua devoção às mulheres. Ariovaldo ouvia e se extasiava, nunca havia se sentido assim. Que lugar era aquele?
Estava super empolgado com a conversa quando viu uma criatura que lhe pareceu etérea. Linda! Aquilo que pendia de sua cabecinha, e que descobriu chamar-se cabelo, brilhava sob o sol, balançando ao balanço do andar. Era toda beleza e encanto. Coisa mais linda, mais cheia de graça…
Ariovaldo, emudecido e arregalado, só faltou começar a babar. O poeta, intrigado, olhou na mesma direção que ele:
- Rapaz, que coisa mais linda! Como é que nunca reparei nela? - e voltando-se para Ariovaldo - Faz dela a tua musa.
- Hein? - ainda abobado - musa?
Mas aí Ariovaldo sentiu uma súbita e deliciosa saudade da Lindalva. Despediu-se do poeta com um caloroso abraço. E resolveu ir direto pra casa dela.
Surpreendeu-a em seu quarto. Ela estava na varanda, olhando as luas gêmeas. Virou-se para ele e fitou-o com ternura, sorrindo. Ele, então, percebeu que aquele par de olhos, apesar de igual a todos os outros, era único...
E lá naquele distante planetinha azul, o poeta tomava para si a musa que fora de Ariovaldo.





Imagem: Bar Veloso. Ipanema.
Fonte: Site PierdeIpanema.com




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